A mulher contemporânea nos filmes de Chantal Akerman
Suas produções refletem a visão da mulher aos olhos da diretora franco-belga
Os filmes de Chantal Akerman refletem o pedido de socorro da diretora, expressando por uma mudança no sistema pela qual ele funciona. Lembrando que os protestos realizados em Paris em maio de 1968 se tornaram um instrumento poderoso de mudança, não apenas em âmbitos sociais, mas em todos os setores da sociedade, que clamavam por justiça e igualdade por direitos.
Nada tão marcante como a França ser o palco da mudança. E foi com os cinemas franceses, mais precisamente com a Nouvelle Vague, que Akerman cresceu e decidiu optar por seguir a carreira de cineasta. Jean Luc-Godard foi um epítome para Akerman, e seu filme Acossado, de 1960, é a produção que definiu o futuro de vida dela. Embora o estilo de Godard seja diferente da forma cinematográfica de Akerman, a magia de contar histórias através de um ecrã se tornou realidade em sua vida.
Uma de suas exigências diante das telas está a urgência por mudança nas questões patriarcais de uma sociedade conservadora em questões morais. Inserida dentro de um longo sistema patriarcal onde o homem domina as principais funções da sociedade, Chantal esteve acostumada a estar sempre fora dos padrões impostos historicamente. Então, Akerman sempre esteve disposta a imaginar um mundo melhor, onde personagens mulheres sempre foram as protagonistas dentro de um objetivo de revolução em paradigma.
Suas personagens são independentes, outras são escravas de um sistema machista e cheio de demandas. Numa época em que Simone de Beauvoir era a principal referência da literatura feminista, Akerman se transformou num referencial feminino do cinema, importado da Europa.
Experimental e inspirada no movimento avant-garde, ela começa a desenvolver seu próprio estilo de narrativa, desafiando as “leis convencionais do cinema”. Não que o cinema em si tivesse regras, pois tudo que era lei, Chantal Akerman destruía e reconstruía de acordo com sua própria maneira de estruturar uma narrativa.
Akerman, por retratar narrativas que expõem as dificuldades das mulheres em um modelo judaico-cristão, faz de suas personagens grandes experimentos. Cada uma delas tem desejos, guardam sonhos, e tem na atitude para resolver problemas como qualidade de sua própria independência. Embora emponderadas e com personalidade, elas são assombradas por cada obstáculo.
Os desafios que Akerman apresenta às suas personagens são grandes pedras em seus sapatos, e aos poucos vamos nos solidarizando com elas. Cada uma delas nos dão sentimentos diversos quando retratadas em suas narrativas. Sua forma de contar uma história também é diferente, ajudando e influenciando muitas mulheres a trabalharem futuramente com cinema.
Sua estreia em Eu, Tu, Ele, Ela, em 1974, já mostrava seu talento não apenas em dirigir filmes, mas em atuar também. Ela mesma é a protagonista — Julie. Filmado em preto e branco, ela está de costas para a tela. Está sentada, imóvel, ao lado de sua cama, em “um pequeno quarto branco, no térreo”. Permanece na monotonia de seu quarto branco, esperando. E assim fica: esperando para ver se alguma coisa acontece.
No primeiro dia, ela pinta a mobília de azul; no segundo dia, de verde; no terceiro dia, ela coloca tudo na sala; e no quarto dia, ela deita em seu colchão, percebendo que seu quarto parece maior. E assim, Akerman vai mostrando um estilo de contar história que se mistura com temáticas sombrias, incluindo solidão, até acrescentar uma cena de sexo lésbico (a primeira vez em que tal abordagem é apresentada no cinema).
Os sentimentos, vontades e ações — todas elas retratadas de forma tão experimental — são apresentadas ao espectador com intuito de que nossos olhos estejam atentos a cada take, cada cena, pois tudo há um significado por trás do cenário, cor e da atuação de sua personagem.
Akerman é mais atitude e pouca fala. Seu roteiro é direto, conciso e estabelece sua própria direção. Cada cena parada e imóvel — para transmitir profundidade — passa uma mensagem de que há algo importante acontecendo ali, desde ambientes caseiros como um quarto, ou até mesmo uma própria cozinha doméstica.
Um filme como Jeanne Dielman é um marco do cinema para a cineasta, cuja coragem fez dela um grande talento a abraçar uma história feminista de empoderamento e superação. Ela joga seu próprio estilo e transgride os modelos tradicionais e convencionais do cinema.
Jeanne (Delphine Seyrig) é uma mãe dedicada, uma dona de casa que pensa em tudo, menos nela. Ela prepara alimento para seu filho, além de cuidar de todas as tarefas de casa e ganhar “renda extra” nas horas vagas. Filmado para retratar três dias na vida desta mãe e dona de casa, a abordagem de Akerman atinge a nossa consciência (uma existência invisível, mas estrutural de um mundo machista, e a forma como este mundo está desmoronando em cima de Jeanne).
São personagens como Jeanne que Akerman projeta na grande tela e apresenta o problema da sociedade ocidental: a objetificação da mulher como engenharia social para cuidar do lar e do conforto matrimonial, enquanto o homem cuida do mundo afora, com segmentos e hierarquias fechadas para uma mulher. Por isso, um filme como Jeanne Dielman (esquecido durante tanto tempo, mas ressuscitado na atualidade onde as mulheres dominam a cena pop) é tão necessário.
Outro filme que define bem o estilo akermaniano é Notícias de Casa, documentário onde retrata a experiência da cineasta por um ano residindo em Nova York. Akerman narra as cartas enviadas por sua família, mantendo contato entre Bélgica e Estados Unidos, e as cenas em movimento das ruas de Nova York mantém um sentimento de poesia visual, ainda que aborde em muitos momentos, as dificuldades visuais de seus moradores.
Mas poesia e narrativa se misturam, e a exploração de Akerman de transmitir personalidades que formam a mulher contemporânea é manifesta explicitamente. A diretora acrescentaria personalidades próprias em suas personagens, como em Os Encontros de Anna (1978), onde Anne Silver (Aurore Clément) viaja pela Alemanha Ocidental, Bélgica e França para promover seu novo filme.
Ao longo do caminho, ela conhece estranhos, amigos, ex-amantes e familiares, enquanto atravessa uma Europa Ocidental isolada e cada vez mais homogênea. A personalidade de Anne é acrescentada ainda com questões que são abordadas para o debate, como a cultura patriarcal do casamento, a solidão, o relacionamento homossexual (muito retratada em sua obra, mas também muito presente aqui) e a indecisão de uma mulher que não sente a mínima vontade de criar uma família nos moldes convencionais.
Fria, distante e focada em seus objetivos, esta é Anne com qualidades pessoais de Akerman. É a maneira que ela tem de fazer cinema e abordar a si mesma e a questões políticas sociais.
Sua forma de experimentação em Toda uma Noite explora uma forma poética de abordar a noite belga, através das complexas relações humanas. Com abordagem e contemplativa, Akerman oferece uma experiência de tela que transcende a narrativa convencional, explorando a interconexão entre solidão, desejo e a passagem do tempo.
Embora ela também tenha se aventurado em musicais, abordando o mundo fútil das fofocas e das futilidades das mulheres (Golden Eighties), ela foi acusada de trair o movimento feminista no cinema.
Ao contrário destas acusações, Akerman se diferenciou enquanto cineasta, abordando assuntos femininos, como a indecisão — temas também recorrentes ao universo masculino — e um triângulo amoroso em Noite e Dia, tendo Paris como plano de fundo. Sua intenção em observar os relacionáveis e suas interações é uma marca registrada, nunca esquecendo de fazer disso uma forma visual e poética entre amor, sexo, infelicidade e traição.
Seus filmes refletem um caráter sincero, que beira a ser constrangedor quando Akerman expõe os problemas sociais e humanos em suas narrativas. Ela sabe colocar esses problemas em suas histórias e traçar paralelos dentro da mesma periodicidade.
A Prisioneira é um filme perfeito onde Akerman acrescenta camadas dentro de um problema que é a raiz para desenvolvimento da narrativa: o relacionamento doentio entre Simon e Ariane, interpretados respectivamente por Stanislas Merhar e Sylvie Testud, apresentado às telas como forma de posse.
Essa posse, característico do domínio masculino sobre a mulher, torna-se obsessivo, somado ao lado passivo de Ariane, que permite ser tratada desse jeito, e sugere, segundo Akerman, uma espécie de alienação feminina numa sociedade retrógrada.
Akerman, em seus filmes, consegue trazer as objetividades ao demolir cada ideia questionada pós-protestos de maio de 1968. Seus filmes são sinceros, trazendo a personalidade viva de uma mulher que consegue reunir os problemas existentes no imaginário do Ocidente.