A amizade ultrapassa barreiras entre natureza e modernidade em ‘Dersu Uzala’
Clássico setentista de Akira Kurosawa é um retrato melancólico da transitoriedade da vida e da inevitável colisão entre o homem civilizado e a natureza selvagem
Lançado em 1975, Dersu Uzala marca o primeiro e único trabalho de Akira Kurosawa fora do Japão, e foi rodado na extinta União Soviética em colaboração com a produtora Mosfilm. A narrativa é baseada nos relatos do explorador russo Vladimir Arsenyev, que documentou suas viagens pela região de Ussuri, no Extremo Oriente russo, no início do século 20.
Esta mudança de ambiente — tanto geográfica quanto cinematográfica — permitiu a Kurosawa explorar temáticas universais de uma forma mais introspectiva, utilizando a vastidão da natureza como um personagem central.
O filme segue o capitão Arsenyev (Yury Solomin) enquanto lidera uma expedição científica pelo território inóspito da Sibéria. Durante a jornada, ele encontra Dersu Uzala (Maksim Munzuk), um caçador nômade da etnia Goldi que vive em perfeita harmonia com a natureza. O ponto central do filme é a relação de amizade que floresce entre Arsenyev e Dersu, com suas filosofias de vida contrastantes.
Enquanto o capitão é um homem da civilização, com uma mentalidade científica e militar, Dersu é a personificação do homem em sincronia com o mundo natural, possuindo uma sabedoria quase mística em relação à floresta, ao clima e aos animais.
O longa não é apenas um estudo dessa amizade improvável, mas também um retrato melancólico da transitoriedade da vida e da inevitável colisão entre o homem civilizado e a natureza selvagem. À medida que a narrativa avança, a deterioração física de Dersu reflete a incapacidade do homem primitivo de sobreviver em um mundo que está rapidamente mudando.
Kurosawa faz uso magistral da paisagem siberiana, transformando a vastidão da floresta, das montanhas e dos rios em uma metáfora visual para as emoções de seus personagens. O diretor, sempre meticuloso em sua abordagem, utiliza a natureza como um elemento vivo — ora acolhedora, ora ameaçadora. Isso é evidente em cenas como a que Arsenyev e Dersu se veem presos no meio de um lago congelado, lutando contra uma nevasca iminente.
O jogo de câmera de Kurosawa captura a vastidão desolada e o desespero crescente dos personagens, enquanto eles lutam para construir uma cabana de juncos e evitar a morte. A cena é um testemunho do poder da natureza sobre o ser humano, e da fragilidade de nossa existência diante dela.
Dersu salva a expedição ao prever que um vendaval se aproxima, guiando os homens até a segurança. O personagem de Dersu não é apenas um guia físico, mas também espiritual, demonstrando uma conexão profunda com o mundo natural que transcende a compreensão moderna. Esses momentos de tensão são entremeados com cenas mais tranquilas e contemplativas, como quando Dersu observa atentamente os animais à sua volta, interagindo com eles com respeito e reverência. A câmera de Kurosawa, muitas vezes em planos largos, permite que o espectador sinta o isolamento e a solidão da floresta, ao mesmo tempo em que captura a serenidade e a beleza intocada do local.
A escolha de Kurosawa de rodar Dersu Uzala em 70mm contribui para a grandiosidade visual do filme. O formato amplia a sensação de imensidão, tanto da paisagem quanto da jornada emocional dos personagens. Cada quadro é tratado com o mesmo cuidado de uma pintura detalhada, e Kurosawa aproveita ao máximo os contrastes entre a vastidão dos cenários naturais e a intimidade dos momentos humanos.
Um exemplo particularmente poderoso do uso de câmera é a transição entre cenas de solidão extrema e proximidade emocional. Quando Arsenyev e Dersu compartilham uma refeição à beira de um rio, o filme alterna entre planos amplos, onde os dois parecem minúsculos diante da vastidão natural, e close-ups que enfatizam a vulnerabilidade emocional de ambos. O rio que flui suavemente ao fundo é ao mesmo tempo símbolo de continuidade e mudança — uma representação da vida em constante movimento.
O cineasta japonês usa movimentos de câmera suaves, sem pressa, permitindo que o espectador se perca na beleza da natureza e nas sutilezas das interações entre os personagens. Essa abordagem lenta e deliberada reflete o ritmo da própria natureza, que segue seu curso independente da vontade humana. Há também um uso notável de silêncios — Kurosawa confia na paisagem sonora natural da floresta para preencher o vazio entre as falas, criando uma atmosfera de contemplação e reverência.
A grande questão que Kurosawa parece explorar dentro do filme é a relação do homem com o meio ambiente e com o tempo. Dersu representa o homem em harmonia com a natureza, alguém que compreende as leis da selva e vive de acordo com seus ritmos. Arsenyev, por outro lado, personifica o homem moderno, que tenta domar e estudar a natureza, mas que, no final, é impotente diante de sua força.
No entanto, o filme não é uma simples crítica ao progresso ou à civilização. Kurosawa, sempre humanista, nos mostra que a amizade entre Dersu e Arsenyev transcende essas diferenças. Eles compartilham uma conexão profunda, construída com base na admiração mútua e no respeito. À medida que o filme se aproxima do final, no entanto, fica claro que essa amizade está fadada ao fracasso, assim como a coexistência harmoniosa entre o homem e a natureza está ameaçada pelo avanço inexorável da modernidade.
A morte de Dersu é profundamente simbólica. Ele, que era tão forte e resiliente na floresta, torna-se vulnerável ao ser inserido na civilização. O declínio de sua visão, que eventualmente o impossibilita de continuar a caçar, é um indicativo de sua perda de lugar no mundo. É um momento de grande tristeza, tanto para Arsenyev quanto para o espectador, que vê a força da natureza ser derrotada pelas circunstâncias da vida moderna.
Kurosawa, longe de sua zona de conforto, demonstra uma maturidade cinematográfica impressionante, criando uma obra profundamente filosófica e visualmente deslumbrante. A amizade entre Dersu (Maksim Munzuk) e Arsenyev (Yury Solomin) é o coração do filme, mas a verdadeira protagonista é a natureza — vasta, imprevisível e, no final das contas, imparável.
O filme nos lembra da fragilidade da vida humana e da nossa conexão inescapável com o mundo natural. Dersu, em sua sabedoria, compreende isso de forma instintiva, enquanto Arsenyev precisa aprender essa lição ao longo do filme. Para Kurosawa, Dersu Uzala é um lamento pela perda de uma era e um aviso de que a modernidade, em sua busca por controle, pode nos desconectar de algo fundamentalmente humano: nossa relação com a terra.
É um do Kurosawa que sempre esteve na minha lista e eu postergava. Depois disso tudo, me convenceu a subir para os primeiros da lista! Tenho Ikiru e Ran como uns dos meus preferidos da vida.
Assisti pela primeira vez na pandemia e de lá pra cá mais outras 3.
Que filme!!!